Hoje ocorreu um importante fato histórico, político e
cultural na cidade Congonhas. Talvez uma centena de pessoas saiba disso. Talvez
mais, talvez menos. Às dez horas da manhã do dia 12 de maio de 2014, foram
reposicionadas algumas figuras bíblicas dos Passos da Paixão de Cristo, em
Congonhas.
O reposicionamento das figuras dentro dos Passos, que foram
construídos entre 1796 e 1799, ocorreu, posso dizer, em silêncio. Digo em
silêncio desconsiderando, é claro, o morno debate acadêmico passado em arquivos
históricos, páginas amareladas, artigos científicos que não ouvi, toquei ou li.
Aconteceram, portanto, em silêncio entre aqueles que se habituaram a passear
por aqueles passos, a rezar neles, a admirar neles a arte ou devotar a eles sua
fé. Ou entre aqueles que sentem saudade da época em que se podia fazer “sarau”
em suas escadarias. Ou entre aqueles que ainda não conseguiram ver o efeito dos
2 milhões de reais gastos no projeto de iluminação noturna das capelas, que pode
ser visto do entardecer às 20:30h – horário em que, enfim, as capelas são “devidamente”
cercadas por correntes e guardas noturnos, protegidas, portanto, dos nossos
olhares!
Este reposicionamento faz parte da fase final de restauração
dos passos, ocorrida em três etapas, distanciadas no tempo. Foi realizado hoje
pelas mãos da Historiadora da Arte Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira, durante
a Semana de Museus de Congonhas. Portanto, dentro de uma programação oficial “carimbada”
pela Prefeitura Municipal de Congonhas, pela Fumcult – Fundação Municipal de Cultura,
Lazer e Turismo de Congonhas e, sobretudo, pelo IPHAN. A historiadora lançou aqui seu livro, no qual
revela as fontes históricas de suas últimas descobertas, e retoma, detalhando,
as restaurações anteriores realizadas aqui.
A primeira dessas “restaurações” – na verdade, grandes
transformações baseadas em um misto de pesquisa em arquivos históricos,
hipóteses e “bom senso” de cada pesquisador –ocorreu em 1957 e restaurou as
pinturas originais das figuras esculpidas por Aleijadinho, que haviam sido
repintadas. A segunda, de 1973/1974, deu origem ao atual jardim que cerca os
passos, planejado por Burle Marx, substituindo o antigo jardim simétrico que
ocupava o espaço, e “corrigiu”, segundo a autora, posições de esculturas de
alguns passos. Hoje, então, foi
realizada a terceira e – até então – última etapa de restauração dos passos,
iniciado em 2005 e finalizada, segundo o livro, em 2010. Nesta etapa, aconteceu
a restauração das pinturas nas paredes e tetos das capelas, desde a década de
1980 já descobertas como de Mestre Athaíde, mas que somente ganhou o “consenso”,
segundo Myryam, nos anos 2000. Reveladas as pinturas originais e baseando-se na
hipótese de que o Santuário do Bom Jesus de Braga serviu de base para o
trabalho de Aleijadinho, Myryam realizou hoje, aqui em Congonhas, o
reposicionamento das figuras bíblicas das capelas. Três anos após o lançamento
do seu livro Os passos de Congonhas e
suas restaurações, que já previa tal reposicionamento.
Ainda não li o livro. Pois infelizmente, apesar dele ter
sido lançado em 2010, apenas hoje chegou ao conhecimento e mãos de (alguns)
moradores de Congonhas. Como em qualquer ciência, é óbvia a existência das incertezas
referentes às fontes escolhidas, à interpretação do pesquisador, à política em
torno da questão, etc., etc., etc. Não sou, também, nenhuma especialista para
discutir qualquer questão a respeito do alcance da hipótese da pesquisadora, a
respeito do “original” posicionamento das figuras. Nem é esta a minha intenção
neste breve desabafo. (O que não me impede, porém, de pensar em discutir se, de
fato, a “restauração” de obras e espaços implica em deixar de fora os elementos
– humanos ou não – que constituem a marca do tempo na obra).
Mas o que mais me incomoda, neste caso, é que tudo ocorra,
como eu disse, em silêncios.
Sem diálogo com aqueles que vivenciam estas obras, não
apenas como obra de arte, nem apenas como obras sacras, mas, usando as palavras
da própria Myryam, como obra viva.